A filha do cacique Cauré , de nome Saíra, era a mais bela das Ipurina. Os pássaros vinham acordá-la ao amanhecer e as flores curvavam-se à sua passagem; os espinhos evitavam-na.
Um dia, porém, ela engravidou sem ter sido dada em casamento a nenhum guerreiro.
O desgosto de Cauré foi imenso! Chamou a filha Saíra e questionou-a sobre o pai da criança. Saíra emudeceu. A decisão de Cauré foi inexorável. Ela seria banida da tribo e viveria confinada em uma oca no centro da mata, de onde só sairia após o nascimento e da morte do fruto proibido.
Quando a lei imutável da natureza completou o seu ciclo, nasceu uma menina. Pele alva, olhos azuis como o mais profundo céu, cabelos louros como espigas de trigo sazonadas, causaram deslumbramento em Saíra e Cauré. Este último, ao ver a beleza da neta, esqueceu a vontade de matá-la e caiu de amores pela menina.
Cauré, Saíra e Mani (este foi o nome dado a menina) regressaram para a tribo e daí por diante o velho cacique ficava horas esquecidas em êxtase, contemplando a radiosa beleza de Mani.
Passaram-se quatro épocas das chuvas e Mani ficava cada vez mais esplendorosa em sua formosura.
Certa manhã de sol radioso, Mani não acordou, ante o desespero impotente de Cauré.Era costume da tribo Ipurina cremar seus mortos. Cauré quebrou a tradição e enterrou Mani na entrada de sua oca.
Passaram-se quatro luas e da terra em que Mani foi enterrada nasceu uma planta que, depois de um certo tempo, desnudou-se das folhas.
Cauré julgava que as folhas fossem eternas e ficou triste pois a planta havia morrido. Resolvendo arrancá-la, ao fazê-lo, viu surgir, à guisa de raízes, grandes tubérculos. Curioso, resolveu mordê-la e, ao mastigá-la, achou-a deliciosa. Resolveu chamar a este novo alimento de Mani-oca ( a casa de Mani).
Segundo a FAO , perto de 600 milhões de pessoas tem na mandioca sua principal fonte de carboidratos e até sua principal fonte de alimentos.
A raiz representa para alguns países da África , o que a batata já representou para alguns países da Europa , sendo a base da alimentação destes povos. Tanto é que , apesar de brasileiríssima , seus maiores produtores, hoje em dia, estão na África : A Nigéria lidera a produção, com 32,5 milhões de toneladas/ano, seguida do Brasil com 24 milhões. Os outros países produtores são, em ordem, o Congo (18,5 milhões de toneladas), a Tailândia (18,0) e a Indonésia (16,0).
Uma viagem pelo norte e nordeste do Brasil vai provar cabalmente a versatilidade e a utilidade infinita de nosso tubérculo. Das folhas às raspas , a nobre mandioca é utilizada e consumida de 1001 diferentes formas.
Podendo ser plantada em qualquer tipo de solo, ela tem diversos subprodutos :
Farinha de mandioca: Como não havia farinha de trigo os europeus passaram a conviver com a farinha de mandioca, mas para isso empregavam alguma tecnologia para obter outros subprodutos. Um deles foi uma farinha de mandioca mais fina e com um pouco mais de trabalho obtinha-se o polvilho, que recebeu diversas misturas, como o leite, ovos, açúcar e queijo.
Para produzir a farinha de mandioca ela era colhida, descascada e ralada numa tábua cravejada de pedrinhas pontiagudas. Em seguida, era macerada dentro de um espremedor de palha chamado tipiti, escorrendo dali seu suco venenoso. A massa branca resultante era levada ao fogo em grandes panelas de barro onde era mexida e remexida até transformar-se em farinha.
A farinha de mandioca foi tão bem aceita que há relatos de que os navios que voltavam para a Portugal, partindo do Brasil, não saíam sem ter como lastro principal a farinha-de-guerra, dita como "muito sadia e desenfastiada e molhada ao caldo de carne ou de peixe fica branda e saborosa". Outro componente desta matula era os beijus grossos e bem torrados, que duravam um ano. Pode-se dizer ainda que a farinha de mandioca é o primeiro produto de exportação brasileiro.
Polvilho: os índios não se contentaram apenas com a farinha, e acabaram por descobrir outros usos para a mandioca. A fécula da mandioca, que é obtida a partir da sedimentação do seu suco, é chamada goma ou polvilho. Se for usada logo em seguida é chamada goma fresca ou polvilho doce. Caso o líquido continue sedimentando por 15 a 20 dias, fermentando o amido, passa a ser chamada de goma seca ou polvilho azedo, em razão de seu sabor ser ligeiramente ácido.
O polvilho deu origem ao beiju, que é uma espécie de panqueca que pode ser torrada ou mole, redonda, pequena, grande, retangular, flocada, preparada pura ou misturada com outros ingredientes. O beiju também é conhecido como cica, membeca, biju, enrodilhado, assu, malampansa, sarapó, caruba. Com o polvilho também são feitas as tapiocas e o tacacá.
Tapioca: a goma, ainda úmida, espalhada em uma chapa ou pedra sobre o fogo, vai estourar como pipoca e produzir grãos levíssimos e irregulares que chamamos de tapioca. Extremamente digestiva, os índios consideravam-na como alimento dos deuses.
Puba: conhecida também como carimã ou massa de mandioca, é um produto obtido a partir das raízes deixadas de molho em água de três a cinco dias para fermentar e, em seguida, prensadas e embaladas sob a forma de pequenas bolas. No nordeste do Brasil, o carimã é vendido em sacos, sob a forma de bolinhos de cheiro azedo. Com a puba podemos fazer bolos, mingaus, angus e cuscuz, inclusive o maravilhoso Pé-de-moleque nordestino, que não tem nada a ver com nosso doce de São João.
Tucupi: Resultado do longo cozimento da manipuera, que é o suco venenoso extraído da mandioca. Este suco, antes de ser fervido, contém ácido cianídrico, que é um veneno se evapora durante a ebulição.
O termo tucupi é de origem tupi: tycu-pi, que significa 'a decoada ou fervura picante'. Não é preciso dizer mais nada. O tucupi é um molho ou tempero autenticamente indígena extraído da mandioca-brava.
Também tem sua lenda de criação :
Jacy ( a Lua) e Iassytatassú (a Estrela d'alva), combinaram visitar o centro da Terra. Quando foram atravessar o abismo, Caninana Tyiiba( a grande cobra) mordeu a face de Jacy. Jacy derramou suas lágrimas sobre uma plantação de mandioca. Depois disso o rosto de Jacy ficou marcado(as crateras lunares) para sempre pelas mordidas de Caninana. À partir das lágrimas de Jacy, surgiu o tycupy (tucupi)
O tucupi acompanha os pratos à base de peixe, em deliciosas peixadas, e caldeiradas ou apenas como molho de acompanhamento , mas ganhou fama ao tornar-se um parceiro corriqueiro do consumo do pato. Vale ressaltar que o pato foi intensamente utilizado nas mesas do Brasil-Colônia.
Da mistura de tucupi com o polvilho obtém-se o arubé, um molho extremamente apetitoso. Com o tucupi também é feito o tacacá, um mingau típico da Amazônia vendido em cuias , principalmente, nas ruas de Belém
Cauim: Os homens não se envolviam na preparação da clássica bebida indígena. Tal como a farinha as bebidas estão a cargo das mulheres virgens. As raízes de mandioca utilizadas no preparo de sua bebida são cortadas em rodelas finas e cozidas em grandes vasilhas de barro cheias de água. Depois de frias as virgens acocoram-se ao redor das vasilhas e mastigam as rodelas e mandioca e cospem-na em outro recipiente. Cozido e fermentado em vasos de barro. Quando tudo fermenta e espuma, cobrem os vasos e a bebida está pronta para o uso.
A Casa de Farinha, centro nervoso da produção dos sub produtos da mandioca tem seu desenho básico delineado pelos índios, ampliado nos tempos coloniais e , desta forma permanece até os dias de hoje.
O maquinário utilizado é a versão moderna do método utilizado pelos índios. Uma roda motora com uns 2 metros de diâmetro, com dois veios terminais do eixo para os puxadores, um chicote de couro cru servindo de correia de polia, com o objetivo de movimentar o caititu (cilindro de madeira onde se adaptam serrilhas metálicas para ralar a mandioca). Geralmente alguma mulher se encarrega de colocar a mandioca no caititu e de regular a pressão da raiz no encontro do rolo de acordo com o empuxo da roda, e dois homens dão o impulso ao rolo. E, dessa forma, rala-se a mandioca, num ritmo acelerado e não contínuo.
O serviço de girar a roda é extremamente duro; e para isso escolhe-se os dois homens fortes da região.
Metade da massa ralada vai para a uma rede a fim de tirar o excesso de amido e, em seguida segue para uma prensa, onde será retirado o suco venenoso.
Da prensa a massa vai para uma peneira e da peneira, para o forno. Esse forno é todo armado em arcos de alvenaria, ele tem de três a quatro metros de diâmetro e é ladrilhado com grandes tijolos , ou encimado por um gigantesco tacho de cobre onde se torra a farinha.
A Roda das Raspadeiras: dez a quinze mulheres sentadas em círculo raspando a casca da mandioca para depois colocá-la no caititu. Enquanto trabalham – e trabalham duro – fazem toda crônica social da região, trocam segredos e receitas, últimas notícias e fofocas. Em torno das raspadeiras ficam as crianças que as acompanham onde quer que vão e que desde muito cedo ajudam a descascar a mandioca. E há um terceiro grupo de pessoas que são os chamados perus: não tem nada o que fazer ali mas ficam espiando.
Muito mais pode ser dito , contado e falado sobre esta nobre planta.
Vamos voltar a ela dia destes.
Termino nosso papo deste mês com uma dica:
Dica do Luciano, dono do restaurante Bode Assado do Luciano, em Caruaru – PE ;
Quando for fritar mandioca, primeiro cozinhe-a e corte em toletes, congelando-os.
Frite depois , ainda congelados. Vão ficar crocantes por fora e macios por dentro.
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