Imagine um jantar em que os três homens mais poderosos de seu tempo, se encontram apenas para bater papo e comer
Pois este jantar aconteceu mesmo, foi a 7 de junho de 1867, em Paris, e dele participaram o Tsar Alexandre II, seu filho o Tsarevich Alexandre, futuro Alexandre III, o Kaiser Guilherme I da Prússia e, de quebra, o príncipe Otto von Bismark, unificador da Alemanha.
O cenário:
A Exposição Universal de Paris. Inaugurada em 1 de abril, era uma resposta de Napoleão III e dos franceses à exposição de Londres, em 1862. Além da velha disputa de prestígio e liderança com o país vizinho, a França queria mostrar seu poder e avanço tecnológico. Realizada numa área de 690.000 m2 no Champs de Mars, dos quais 150.000 m2 destinados ao monumental Pavilhão Central, foi também uma forma de apresentar a nova Paris ao mundo, depois das geniais reformas na cidade e seu planejamento urbano, realizados pelo barão Georges Eugène Haussmann, o arquiteto que reurbanizou Paris a pedido de Napoleão. Além de inovações como o elevador hidráulico, o concreto reforçado e os gigantescos canhões projetados e fabricados pela Krupp, indústria que era exemplo da grandeza da Prússia, uma área foi destinada exatamente para expor o desenvolvimento social da humanidade, com modelos para construção de casas populares, novas técnicas de ensino e aprendizagem e até mesmo um projeto de uma vila operária desenvolvido pelo próprio Napoleão III.
Mas seu maior triunfo foi na área diplomática. Praticamente todas as cabeças coroadas, presidentes, chefes de estado e de governo, ministros e líderes do mundo passaram pelo Champs de Mars durante os 217 dias que durou o evento. Foi um recorde jamais visto de acordos, contratos, negociações e tratados.
O Restaurante :
O Café Anglais, o mais badalado restaurante de Paris no séc. XIX. Fundado em 1802, no Boulevard des Italiens, inicialmente era um local onde cocheiros e servos tomavam seu english breakfast ou faziam rápidas refeições. Seu nome foi uma homenagem ao Tratado de Amiens, que selou a paz definitiva entre França e Inglaterra.
Em 1822, seu novo proprietário Paul Chevreuil, realiza uma reforma geral nas instalações, na decoração e no menu. Vira local da moda em Paris, e uma tradição em grelhados e assados. Com a contratação do chef Adolphe Dugléré, em 1866, o café Anglais passa a ser “o restaurante” de Paris e a servir pratos que fizeram história e foram copiados no mundo todo como a Potage Germiny, Poulard à la D’Albufera, Sole Dugléré, Tournedos Rossini e muitos outros.
Em 1913, o Café foi fechado para demolir o prédio e não abriu mais. Felizmente, a sua adega, os painéis de madeira do salão Grand Seize (onde foi realizado o memorável jantar), assim como parte da cutelaria, cristais e porcelana foram adquiridos pelo genro de Claude Burdel (então dono do Café), Andre Terrail que estava negociando a compra de um novo restaurante, o Tour D’Argent, atualmente o restaurante mais antigo de Paris ainda em atividade e que mantém todo este material e as decorações originais à vista do público. Aliás, se for lá, experimente um dos famosíssimos patos numerados.
Trata-se de uma receita criada ao redor de 1650 por espanhóis que se estabeleceram no Vale do Loire, adaptada pelo chef Méchenet de Rouen no início do séc. XIX e depois adotada pelo maitre d’hotel Master Fredéric para o Tour D’Argent. O pato em questão só pode ser da espécie Challandais, descendente dos patos originais capturados pelos espanhóis e é assado de forma a ficar mal passado.
A cerimônia à mesa é quase uma liturgia, chamada de Théâtre du Canard, executada pelos canardiers, considerados os legítimos descendentes de Master Frédric.
Pela ordem, retiram-se o peito (magret), coxas e asas.
O magret é cortado longitudinalmente em fatias (aiguilletes).
As asas são cozidas durante um bom tempo até formar um consommé ao qual se adiciona vinho Madeira, conhaque, suco de limão e especiarias.
A carcaça do pato é prensada em uma prensa especial e o suco resultante acrescido ao consommé, formando um espesso molho aquecido e servido sobre as aiguilletes. Coxas são ligeiramente grelhadas e servidas com uma salada, à parte.
Master Fréderic teve a idéia de numerar seus patos e registrá-los em um livro. Desta forma, é possível saber, por exemplo, que o rei Eduardo VII serviu-se do pato 328, o 53.221 foi para o imperador Hiroito, o 112.151 para o pres. Roosevelt, o 203.728 para Marlene Dietrich,o 253.652 para Chaplin, o 938.401 para a mesa de Gorbatchev e o 917.305 para mim.
Vale muito a pena conhecer e experimentar. Aviso: é caro, muito caro.
O Chef :
Adolphe Dugléré nasceu em Bordeaux, em 1805, e morreu em Paris em 1884. Foi um dos discípulos preferidos de Carême (o rei dos cozinheiros e o cozinheiro dos reis) e, como seu mestre, foi chefe de cozinha dos Rotschilds e depois chef do famoso restaurante Les Frères Provençaux.
Em 1866 foi contratado como grand chef do Café Anglais e a partir desta data os dois nomes seriam indissociáveis. Não se pode falar de um sem falar do outro.
Criou pratos e técnicas antológicas como os peixes à la Dugléré, uma forma de assar peixes sobre um colchão de tomates concassé, cebola picada, salsinha, tomilho e um pouquinho de alho. É simples: coloca-se o peixe perfumado com vinho branco sobre o colchão e assa-se. O peixe é retirado, a assadeira é deglaceada, acrescenta-se algumas colheres de velouté e serve-se sobre o peixe.
Batatas Anna, criadas em homenagem a cortesã Anna Deslions, famosa por sua beleza, é uma espécie de pizza feita de batatas cortadas em fatias finíssimas arranjadas em uma forma redonda e assadas com manteiga e ervas. São ainda de sua criação a Potage Germiny, Soufflé à l’Anglaise e muitos outros.
Dugléré foi amigo de muitos, de reis a artistas da época, tendo, por exemplo, participado do desagradável incidente entre Rossini (o compositor Gioachino) e o chef executivo Marcel Magny, que acabou resultando na receita do Tornedo Rossini.
Finalmente, o Menu :
POTAGES - As sopas
Impératrice e Fontanges
O consommé Imperatrice é um caldo de galinha enriquecido com cristas e rins de galos pré-cozidos, folhas de cerefólio e pontas de aspargos.
Já a sopa Fontanges, criada em homenagem à Marie Angelique de Scorailles, Mlle. de Fontanges, uma das amantes preferidas de Luis XIV, consta de um purê de ervilhas frescas misturado a caldo de carne e azedinhas cozidas e picadas. Ao servir-se enfeita-se com uma pasta feita de gemas de ovos e creme de leite colocada sobre o caldo quente.
HORS D’OEUVRE
Soufflé à la Reine
Carême tinha acabado de aprimorar a arte de fazer soufflés e seu discípulo homenageou-o nesta receita que leva miúdos de galinha, champignons e trufas.
RELEVES - Primeiros Pratos
Filets de sole a la Venitienne
Escalope de Turbot au Gratin
Selle de Mouton Purée Bretonne
O molho Venitienne para peixes é uma receita original de Carême. O linguado é apenas cozido no vapor (pochée) e depois coberto com um molho que parte do molho alemão e é completado com estragão, manteiga, noz moscada e vinagre de estragão. É um dos molhos mais complicados de se fazer, pelo tempo e ponto exato de cozimento.
Conhecido por rodovalho, o turbot é um parente do linguado, mas bem maior que o linguado e de sabor mais delicado. Foi servido gratinado com pouquíssimo molho branco e queijo gruyére.
A sela (selle) é um corte do cordeiro que deixa os dois lados do mignon em paralelo. No jantar foi servida assada com um purê de alho-poró, vagens verdes e feijões brancos.
ENTRÉES - Pratos Principais
Poulet a la Portugaise
Pâté Chaud de Cailles
Homards à la Parisienne
Sorbets au Champagne
A preparação Portugaise (Poulet a la Portugaise) para peixes e frangos denomina o alto uso de tomates. Nesta receita o frango foi assado temperado apenas com vinho branco, vermouth seco e alho. À parte, fez-se um molho de tomates e cebolas assados e depois deglaceados com vinho branco e servido sobre o frango.
O patê quente de codornas (Paté Chaud de Cailles) é uma terrine de codornas cozidas durante muito tempo e temperadas com vinho do Porto, e depois enformadas em forma coberta de bacon e recozidas em banho maria.
A preparação Parisienne para frutos do mar (Homards a la Parisiènne) apresenta-os com uma espessa maionese decorada com corações de alcachofra, ovos cozidos recheados de caviar e figurinhas decorativas feitas com aspic. Para este jantar foi escolhida a lagosta, pela pompa e importância dos convidados.
Já os sorbets são um hábito bem antigo de refrescar o paladar, preparando-o para a próxima leva de delícias. A única diferença é que Dugléré utilizou champagne (Sorbets au Champagne) e não água como base.
RÔTS - Os assados
Ortolans sur Canape
A região de Rouens é famosa por seus patos (como o pato prensado, acima). Neste jantar provavelmente foi servido um pato assado e recheado com nozes, coberto por molho Bordelaise enriquecido por fígados de frango.
O ortolão (ortolan) é uma minúscula ave pesando cerca de 30g e praticamente extinta pela gula humana. O ortolão sempre foi considerado uma das delícias históricas da gastronomia, muito provavelmente porque sua dieta basicamente de sementes de uvas, confere um sabor super especial à sua carne. Era assado em espetos e servido sobre uma torrada. Hoje em dia é protegido no mundo inteiro, e sua caça considerada crime ambiental grave na França.
ENTREMETS
Aubergines à l’Espagnole
Asperges em Branches
Cassolete Princesse
Cabe aqui explicar que os entremets, ao contrário de como se utiliza hoje, eram considerados pratos do meio da refeição, servidos entre os assados e a sobremesa, e por isso mais leves.
As beringelas a espanhola foram servidas grelhadas com um molho feito de tomates, pimentões vermelhos, cebola e alho bem picados e refogados em azeite puro.
Os aspargos , amarrados em delicados feixes, foram servidos cobertos com molho bechamel.
Já a cassolete é uma raridade. Na realidade, cassolete é nome de uma pequena travessa funda, com duas abas e que acabou por denominar os preparados nela servidos. No jantar dos imperadores provavelmente foi servido miolo de boi refogado em molho de trufas ou um patê defumado de peixes. Não se sabe ao certo.
DESSERT - A sobremesa
Bombe Glacée
A nossa velha conhecida, a bomba, só que confeccionada em molde gigante, recheada com sorvete, creme e macedônia de frutas, tudo servido gelado.
VINS
Os vinhos formaram um capítulo à parte e mereceriam, de fato, uma outra matéria :
Madeira – retornado da Índia 1810 (Os ingleses levaram muitos vinhos reforçados - madeira,porto e jerez , para a Índia. Por algum motivo , algumas garrafas retornaram e quando abertas, revelaram que a viagem de navio tinha melhorado suas características. Isto criou o hábito dos vinhos retornados que obviamente eram mais escassos e bem mais caros)
Jerez – retornado da Índia 1821
Chataux d’Yquem 1847
Chambertin 1846
Chateaux Margaux 1847
Chateuax Lafite 1848
Uma estimativa rasa feita por especialistas sugere que um jantar como este custaria cerca de 1.000 euros por pessoa.
E para espanto geral, ao sair, o Tsar Alexandre II reclamou que tinha vindo a Paris e ao seu melhor restaurante e não experimentara o famoso foie gras.
Muito sem jeito o maitre Claude Burdel, explicou-lhe que não era costume da gastronomia francesa servir foie gras em junho mas, se ele pudesse aguardar até outubro, não iria se arrepender. Promessa feita, e cumprida: em outubro, quatro gigantescas terrines de foie gras foram enviadas aos quatro ilustres participantes do ilustre e histórico jantar.
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